Por: Mateus Potumati

Fotos: Ivan Stamato

Laboratório: local de pesquisa, experiências e desenvolvimento de ideias.
Fantasma: espírito desencarnado, força invisível, figura assustadora, ente que influência outros seres humanos sem ser percebido.

Sete anos atrás, dois irmãos do Cachoeira, Zona Norte de São Paulo, se depararam com um desafio. A fama crescente do mais velho havia dado luz a uma carreira em potencial, mas, se a explosão do circuito de batalhas de MCs e o otimismo com a economia do país davam espaço para sonhar, o horizonte nebuloso da indústria musical e a completa falta de experiência de ambos fazia da empreitada um grande risco. Mesmo assim, Evandro de Oliveira resolveu largar o trabalho no McDonald’s e foi se juntar ao irmão, Leandro, que então encabeçava a Na Humilde Crew. Com a chegada de Evandro, o Fióti, a Crew se tornou Laboratório, e as experiências conduzidas a partir dali teriam consequências com as quais nenhum dos dois jamais sonharia.

 

 

De 2009 a 2016, muita água passou debaixo dessa ponte. A operação que foi inicialmente montada para gerenciar a carreira de Leandro, o Emicida, se ampliou e diversificou. Virou uma distribuidora de discos, que começou na porta de shows de rap e hoje está online, nos serviços de streaming e em games; uma produtora de outros artistas, como Rael e Kamau; uma marca de roupa e acessórios cujo faturamento mensal surpreende nomes respeitados no mercado. A história toda certamente um dia será contada com a riqueza de detalhes que merece, mas uma frase dita por Emicida no show da última sexta, 3, na festa de sete anos da firma, dá conta da dimensão do feito: “Antes, a gente usava sample do Caetano em mixtape e falava ‘Já pensou se ele processa a gente, mano? Tamo fodido!’. Hoje, ele tá no disco.”

O Laboratório Fantasma produziu um vídeo-manifesto especialmente para reforçar os valores que pautaram o projeto nestes sete anos. Assista:

O maior patrimônio do Laboratório, no entanto, não é material. Em seu curto período de existência, o sonho dos irmãos Oliveira já causou impacto na cultura do país, e o baile de aniversário foi uma demonstração grandiosa disso.

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Costurado pela discotecagem finíssima da Discopédia – projeto do trio de DJs Nyack, Dan Dan e Marco – o lineup cumpriu o prometido ao oferecer um panorama do selo. E ele começa por olhar para para o futuro: a abertura, a cargo do MC Coruja BC1, de Bauru, mostrou que o Lab não perdeu o foco nem a mão para reconhecer novos talentos. Ativo desde o final do ano passado, Coruja tem complexidade lírica, flow denso e talento para soluções rítmicas originais, propositivas e dançantes ao mesmo tempo.

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O DJ Nyack (Emicida/Discopédia) 

Na sequência, Rico Dalasam provou que dá conta do hype. Bastante à vontade no palco grande, abriu com “Não Posso Esperar”, que fez a pista pular. Entre as faixas, interagia e provocava o público, ora fazendo rir com um senso de humor ácido, ora levando a reflexões mais profundas sobre afirmação e auto-aceitação. Drik Barbosa, com uma competente dupla de MCs de apoio, manteve a pista quente com sua pegada mais soul. A rapper não chega a ser exatamente novata, mas andava meio sumida nos últimos anos, até chamar novamente atenção em uma parte gravada para “Mandume”, no último disco de Emicida. “Sem Clichê”, com seu synth e baixo distorcido suave e etéreo, com um flavor trap, parece apontar para um recomeço interessante.

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O MC Coruja

Como esperado, o show de Kamau foi um momento especial da noite. Grande guru do Lab e de toda uma geração de MCs que surgiu a partir de 2008, o rapper subiu ao palco ovacionado. A exemplo de nomes como Del The Funky Homosapien e Thes One, Kamau sempre fez da simplicidade seu maior trunfo. Ali, sem aparentar esforço, ele entregou uma aula de domínio da voz, de musicalidade, de repertório e de público. O clima de festa aumentou ainda mais com a ponta de Emicida na clássica “Por Aí”.

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A rapper Drik Barbosa

 

O próprio Emicida voltaria na sequência, para o show de encerramento. Eu já tinha visto dezenas de shows do rapper, em fases diferentes da carreira, e não esperava grandes surpresas. Mas logo que Emicida entrou, uma magia diferente tomou conta da casa. Claro, as aparições programadas para o decorrer da apresentação ajudaram: Rashid e Fióti, que fizeram pockets bem recebidos no meio da apresentação; Rael, uma das vozes mais bonitas do Brasil hoje; a entrada surpresa de MC Guimê, que cantou “Gueto” e “País do Futebol”; e Seu Jorge, que decretou estado de baile total.
Mas a grande estrela foi mesmo Emicida. Em sincronia total com as mais de 3 mil pessoas que lotavam o Audio Club, ele passou por todas as fases da carreira com um brilho que unia celebração e conquista a uma apresentação irretocável, acima de qualquer outra que eu já tenha visto. Essa conexão entre artista e público é a maior joia conquistada pelo Lab.

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Kamau levantou o público

 

Me lembro de um show do Emicida que recebemos no antigo Espaço Soma, em 2009. Ali, fiquei impressionado com a capacidade que o rapper teve de reunir um público heterogêneo, bonito, estiloso, com personalidade. Meninas com camiseta de banda punk junto com manos de rinhas, moleques de skate e garotas negras com black power. Naquele dia, percebi que estava diante de algo realmente diferente, além do recorte tradicional dos shows de rap.

Em 2016, o que vi no Audio foi a expansão exponencial desse público. Casais de lésbicas e gays, gente de todos os extratos sociais e étnicos, todos jovens, muito jovens, e com capacidade para pagar o preço justo de R$ 60 por um show de qualidade. Várias pessoas cantavam todas as músicas do MC, mas o tom predominante no coro era o feminino. Um dos mais empolgados era um garoto oriental de cabelo comprido e coque de samurai, que há 10 anos seria imaginável apenas um show de metal.

Em um determinado momento do show, Emicida falou sobre uma entrevista que deu a um jornalista, sobre o caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro. Ele lhe perguntara o que ele sentia “como pai”. “Eu falei ‘Eu não tenho que pensar como pai, não tenho que transferir o que aconteceu com ela para alguém da minha família. Eu tenho que me colocar no lugar da mina. Tenho que pensar que não é errado aquilo acontecer com uma mina da minha família, é errado acontecer com qualquer mina.” Muito aplaudido, continuou: “O Brasil é foda, mano. A gente comemora os progresso, só que o progresso muitas vezes vem de mão dada com a tragédia. Essa porra era pra parar o país.”

Na sequência, lembrou do caso dos cinco jovens fuzilados pela PM em um carro, também no Rio: “Enquanto nós tivermos que explicar nessa sociedade que a culpa não é do moleque que tomou 111 tiros e tá ensanguentado no chão, noiz não vamo evoluir porra nenhuma.” A aceitação efusiva de um público tão heterogêneo mostra que o rap, tendo o Laboratório Fantasma à frente como principal força de renovação, conseguiu o enorme feito de selecionar as melhores mentes em cada recorte do público jovem e se mantém no Brasil como a principal resistência progressista e afirmativa orgânica na cultura jovem. Ao criar uma experiência unificadora que poucas instâncias na sociedade conseguem, o Laboratório Fantasma semeia algo de valor inestimável para o futuro. Presenciar tudo isso foi uma necessária injeção de alegria e esperança em um país que parece tão determinado a regredir.

Aos sete anos, a empreitada dos irmãos Oliveira é um caso de sucesso que borra fronteiras e embaralha conceitos. É conquista pessoal, porque exigiu uma capacidade quase sobre-humana de aprender sozinho, e é força comunitária, porque resultado de um movimento de afirmação cultural e social que vai muito além da soma dos integrantes da empresa. É ativismo, porque os artistas da casa e sua rede estendida são hoje a principal voz de reflexão étnica e social na cultura jovem do país, mas também é entretenimento, como comprovam as pistas lotadas em shows pelo país.

É inclusão social, porque fruto de uma época em que as oportunidades se expandiram e democratizaram, e é ascensão pelo mérito – aqui, sim, o mérito inquestionável de dois irmãos que na infância iam ao centro da cidade pedir dinheiro, escondidos da mãe, e hoje dão palestras em cursos de marketing. Em um país que mata 30 mil negros por ano, que ainda enfrenta resistência na implantação de políticas afirmativas, e que mesmo assim nega seu racismo em grande parte do discurso oficial, trajetórias desse tipo adquirem sempre contornos de milagre. Na noite da sexta, todos nós nos sentimos abençoados.