Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa
Mais do que uma vontade antiga, botar os pés na África era para Emicida quase um chamado de sua ancestralidade. Há anos, sem nem imaginar que o projeto se transformaria em um capítulo de sua carreira, o músico vinha pesquisando o continente, seus ritmos, seu povo, sua história e de que maneira ela se funde com a do Brasil, a história que nunca foi contada nos livros da escola.
Pois em março de 2015, ano em que Emicida celebra sua primeira década de carreira, ano em que países da África lusófona celebram 40 anos de independência, tudo conspirou, incluindo a seleção do projeto pelo programa Natura Musical, para que o músico conseguisse, ao lado do produtor do álbum, Xuxa Levy, desembarcar em Cabo Verde e Angola, e não à toa ele escolheu países de língua portuguesa.
Feita a conexão com instrumentistas locais, foi com eles para o estúdio, e de lá saiu com “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” (Laboratório Fantasma/Natura Musical). O título, aliás, sintetiza a essência dessa viagem que rendeu não só mais um disco, mas também um encontro com suas raízes e uma transformação em sua vida.
“Durante a viagem, esses pontos do título foram imagens muito fortes na minha mente: crianças sorrindo, quadris dançando, pesadelos em volta deles, tentando roubar a alegria que lhes restou, e no meio de tudo isso cada um cumpria suas obrigações, fazia sua lição de casa. Achei que no meio de tanta informação poderia ter um título que apontasse essas imagens todas, como uma lista de coisas que encontrei”, diz Emicida.
Foram 20 dias de viagem, com passagens por Praia (Cabo Verde) e Luanda (Angola), e mesmo que algumas faixas tenham sido gravadas no Brasil, a África, é claro, se faz presente de maneira intensa em todo o álbum. Em “Mufete”_nome de um prato típico de Angola_, Emicida traz no refrão quebradas das cidades que visitou. A percussão na faixa fica a cargo de João Morgado, conhecido instrumentista de semba, ritmo africano considerado por muitos o pai do samba.
Outro angolano no disco é Ndu Carlos, na bateria em “Passarinhos, na bateria e dikanza em “Chapa”, e na percussão em “Mandume” e “Madagascar”. De Cabo Verde, marcam presença em “Chapa” as Batucadeiras do Terrero dos Órgãos, representantes do batuko, ritmo símbolo da cultura cabo-verdiana. “Casa” tem um coral de crianças da escola Penta Grana.
Guitarrista de Cesária Évora por 14 anos, Kaku Alves aparece na guitarra em “Passarinhos”, no violão em “Madagascar” _faixa que também tem a cantora Fattu_ e no violão e no cavaco em “Chapa”. Destaque ainda para “Mãe”, com Anna Tréa e dona Jacira, em mais uma emocionante participação com o filho _ela já havia aparecido em “Crisântemo”, de “O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui” (2013).
Completando o time de convidados estão Vanessa da Mata (“Passarinhos”), Caetano Veloso (“Baiana”) e também novos nomes do rap, como J. Ghetto (“Boa Esperança”) e Drik Barbosa, Rico Dalasam, Amiri, Raphão Alaafin e Muzzike (“Mandume”). O poeta Marcelino Freire foi convidado por Emicida para interpretar seu poema “Trabalhadores do Brasil”, do qual o rapper é fã.
A viagem musical de Emicida começa com o álbum “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” e seguirá com o lançamento de um documentário com todo o registro da ida à África, sob a perspectiva de Ênio César.
O disco chega a público com patrocínio do primeiro edital Natura Musical dedicado exclusivamente à cena paulista, com apoio do Proac, num projeto que inclui também shows de lançamento em São Paulo (dias 21, 22 e 23 no Sesc Pinheiros) e interior paulista. “O programa foi criado para valorizar a música brasileira em várias vertentes: da preservação do legado à revelação de talentos, mas também para contribuir para a realização e ampliação do acesso a momentos emblemáticos de nomes consagrados. O projeto do Emicida é uma oportunidade que nos trouxe enorme alegria, não só por corresponder aos nossos objetivos, mas também pela identificação que temos com sua busca por uma sonoridade que chamamos de raiz-antena, que representa a música brasileira que dialoga e se conecta com a música de outras partes do mundo”, diz Fernanda Paiva, gerente de apoios e patrocínios da Natura.
A distribuição comercial de “Sobre Crianças…” é uma parceria entre o Laboratório Fantasma e a Sony Music, que lançará o disco em toda a América Latina e em Portugal. No país europeu, o lançamento físico e digital acontecerá em 4 de setembro.
“Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” pelo olhar do poeta Sérgio Vaz
Sobre vozes do coração
“Estamos em pleno mar…”
Essa é a real sensação quando se ouve a Poesia do Emicida prensada em forma de música.
De que estamos indo e vindo da África como quem busca fruta no quintal, só que desta vez, livres.
Um oceano inteiro de Poemas entre o ouvido e o coração, uma batida em que o tambor é o ranger dos dentes, e quando você menos espera já está dançando nu de sentimentos ruins, ou como uma adaga em busca de dias melhores.
É um disco sobre a vida, sobre essa que nós temos, que tivemos e que estamos preparando para outras pessoas.
Um RAP que dói, rasga-nos a pele com sua batida que mais parece um chicote no lombo do passado sombrio da escravidão.
Mas que ninguém se engane, é sobre dias de luta que ele canta quando fala de crianças correndo livres pela vida, de amigos que não mandam mais notícias, das mães que embalam filhos no colo do futuro.
São canções de ninar virando hino da boca suja do sofredor.
De Cabo Verde, Angola, Moçambique às quebradas do país, Emicida singra sua Nau pelo sal de lágrimas que o povo africano e da periferia, infelizmente, conhece bem.
Ele também escancara um riso que não cabe no rosto, invoca os deuses da felicidade e se recusa a andar de cabeça baixa.
Da África nos traz histórias lindas desse povo de pele anoitecida e sorriso de marfim que tem na música a bússola para liberdade sem limites.
Como pode me fazer sorrir em cima de lágrimas, e ainda por cima remar sobre o oceano de nossos olhos? Assim são os Poetas como ele, impossíveis.
Este disco que está em suas mãos passará pelos seus ouvidos e chegará em seu coração como uma lança repleta de mel e lâminas de cortes profundo. Porque a arte é isso, nos emociona.
E como bom espadachim ele vai nos golpeando com pequenos cortes na alma com letras tão cortantes que o nosso sangue se esvai e sequer sentimos dor. E pedimos mais.
É um disco sobre arame farpado com embalagem de chocolate.
Sobre onde você vai pendurar sua alma quando a noite chegar.
Sobre mares, encontros e lonjuras.
Sobre vozes no coração que remam em nossos ouvidos.
E do fundo mar, nós embalados pela sua música, gritamos:
“Estamos vivos!”
Sergio Vaz
Poeta