Nesta entrevista, ele fala pela primeira vez não como empresário do rap ou como vice-presidente do Laboratório Fantasma, mas como artista solo em estúdio. Nas linhas abaixo, um papo sobre sua trajetória musical e o projeto do disco: “A música brasileira tem muito a aprender com o rap”

Entre as informações essenciais que você precisa saber sobre o primeiro EP de Evandro Fióti, que está sendo gravado entre os meses de janeiro e fevereiro, está uma série de “nãos”: não, não é um disco de rap. Não, ele não vai deixar o business para se dedicar à carreira musical. Não, Emicida não canta no disco.
Agora, todo o resto é sim. E quantos “sins”, quantas boas sinalizações para a realização deste projeto! Eis a materialização de um planejamento de anos, resultado do malabarismo de quem consegue manter os pés no chão e a cabeça nas exclusivas nuvens dos que permanecem sonhando.

Nome já tem, mas isso contamos em uma outra oportunidade. O importante é saber que vem aí um EP com cinco faixas (talvez sete…), a ser lançado provavelmente em março deste ano – física e virtualmente. Das cinco músicas já certas, três são parcerias entre Fióti e Emicida. Em duas delas, eles assinam melodia e letra, respectivamente. Em uma terceira canção, Emicida complementou a letra escrita por Fióti, que ficou responsável pela melodia. A quarta faixa é uma nova versão para uma música de Emicida, Rael e NAVE. Por fim, a quinta canção do repertório é um samba inédito de Rodrigo Ogi.
O disco tem produção executiva de Raissa Fumagalli. A direção artística e a produção geral do disco são de Fióti, mas ele conta com o reforço de ouvidos mais do que sensíveis para a produção de algumas faixas: Rodrigo Campos e Maurício Fleury.

Agora, a melhor pessoa para contar sobre esse projeto é o próprio Fióti. Pela primeira vez falando não como empresário de Emicida e Rael ou como vice-presidente do Laboratório Fantasma, mas como artista em estúdio, ele respondeu a algumas muitas perguntas, que por fim contam a história de um disco, dois irmãos, uma empresa e a descoberta de que o tempo é o senhor da arrumação.
Dividimos a conversa em duas partes. Vamos à primeira delas:

Lab: Você é um empresário de rap e está gravando um disco com diversas faixas de MPB compostas quase 100% por pessoas do rap. Como foi essa escolha?
Fióti: Isso eu tenho bem definido na minha cabeça: eu acho que os MCs são os autores mais importantes desta geração. São eles que escrevem as melhores letras, e não é à toa. Tem uma coisa de vivência aí. Os MCs precisam entrar um pouco mais nesse mercado da canção, ele tem que ver os autores de rap como grandes compositores. Eu quero mostrar isso. Foi uma coisa em que eu nem tinha pensado, mas naturalmente aconteceu. Acho que a música brasileira tem muito a aprender com esses caras do rap. Não é a toa que o Ney Matogrosso e a Gal Costa gravaram músicas do Criolo.
Quando sair, as pessoas vão dizer: “Isso é Emicida?”. Tem uma coisa de sensibilidade dele que o público não conhece no dia a dia. E essas músicas vão mostrar isso, que o Emicida e os demais MCS do projeto escrevem pra caralho.

Lab: A principal referência musical que as pessoas têm de você é da época em que era MC de apoio do Emicida…
Fióti: Das pessoas que me conhecem dessa época, sim… Mas eu sempre tive uma ligação muito forte com a música, toquei na fanfarra da escola, depois tive um grupo de pagode quando eu tinha 12 anos e aí passei a me interessar mais pelos instrumentos de corda.
Quando acabei a oitava série, descobri o Projeto Guri com a minha mãe. Foi o que mudou a minha vida, eu comecei a conhecer o outro lado da música, porque eu ia só até a parte mais popular. Na MPB, eu ia só até o que tocava no rádio. Com o contato com o violão popular comecei a conhecer Baden Powell, Vinicius de Moraes, comecei a me encantar por chorinho.

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Cabé, Fióti e Mauricio Cersosimo conferem o resultado da gravação

Lab: Vocês tinham uma formação erudita e popular, é isso?
Fióti: Isso não é erudito, isso é popular na verdade. É uma fase da música brasileira que infelizmente acabou virando uma coisa de elite. Mas é música popular e de vagabundo. Baden Powell era vagabundo, Vinicius de Moraes era vagabundo. A geração que depois deu uma elitizada na coisa foi a Bossa Nova, que também saiu do beco, com o Jhonny Alf. Só que só foi realmente ganhar o mundo na voz de Tom Jobim e Frank Sinatra.
O Chorinho também. Quando vêem alguém tocando chorinho ou algo mais pra esse campo, as pessoas já associam a uma coisa mais de elite: “Nossa, o cara toca chorinho”. Sendo que era uma música das ruas, uma música que saiu da favela e que por muito tempo esteve presente em bares…

Lab: Mas você precisou deixar o Guri…
Fióti: Eu saí pra trabalhar. Era muito difícil, eu tinha que ficar pedindo dinheiro para a minha mãe. Ela não tinha problema nenhum em me ajudar, mas eu via que ela me dar seis conto pra comer e fazer aula de violão tinha um sofrimento de tirar grana de algum lugar. Eu tava na aula e isso ficava na minha cabeça, começou a me fazer mal. Nunca quis escolher entre o violão e o trabalho, mas chegou um momento em que eu tive que escolher.
Eu tive que sair do projeto pra começar a trabalhar no McDonald’s. Foi uma experiência legal, mas não era o que eu queria fazer. Levava o violão, tocava nas horas vagas. Tentei voltar em um determinado período, até falei com meu professor, mas aí tinha um patrão chato… Fiquei, fui promovido, e comecei a tocar na noite com o Cabé. E aí nesse período, quando eu entrei no Mc, foi quando o Emicida começou a batalhar, e a gente sempre ficava trocando ideia. A gente começou a falar em pegar as horas vagas e fazer música, e foi surgindo essa parada. Ele foi fazendo as letras e mandava.

Lab: Vem daí a participação do Cabé? Ele trabalha com marketing no Laboratório Fantasma e gravou violão em uma das músicas…
Fióti: Quando eu comecei a produzir, pensei: “Tem uma história que eu preciso fazer com o Cabé, ele precisa estar nesse trabalho”. Eu e o Cabé passamos muito sofrimento juntos. A gente fez aula de violão junto, se conheceu no Projeto Guri.
Ele sempre foi um cara muito centrado, muito calmo. Quando eu comecei a trabalhar no McDonald’s e não tinha mais tempo de fazer aula de violão, a gente sempre se reunia para ensaiar, ficava cifrando vários DVDs. Foi ali que eu comecei a me encantar com jazz, e foi ali que a gente começou a aprender inglês. Você tem um trampo e precisa procurar sempre manter viva a sua arte.

Lab: Vamos falar sobre os músicos. Como foi a escolha de quem iria gravar com você?
Fióti: Postei uma foto no começo do ano passado e disse que ia começar esse projeto. Estava estudando jazz e tal e falei “Vou voltar a estudar mais esse ano, quero gravar um disco”. E aí todas as pessoas que eu chamei pro disco comentaram embaixo. Eu não pedi nada (risos). Mas se os caras tão dizendo que é noiz é porque é noiz… Aí no começo deste ano eu liguei pra ver se era noiz mesmo. E foi.
Entre eles estão: Serginho Machado na bateria, Zé Nigro no baixo, Maurício Fleury na guitarra e nos teclados, Rodrigo Campos no cavaquinho, Silvany Sivuca na percussão…

Lab: Como é estar do outro lado, o do artista?
Fióti: Está sendo um aprendizado pra mim. Vou ser muito mais sensível com meus artistas no estúdio depois disso. Gravar a mesma coisa várias vezes é muito chato…  Eu já tinha essa percepção da importância do trabalho do produtor. Muitas vezes você acha que é capaz de fazer aquilo sozinho, mas existe ali uma coisa de vivência e de entrega que às vezes parece fácil porque a pessoa faz muito bem.
Se você leva um produtor para o estúdio, não pode sair mandando em tudo, porque o cara tem que ter uma autonomia dentro do trabalho. Ele vai falar: “Não bota essa voz agora”… Você contratou ele pra isso.
E foi legal porque o Fleury não é um produtor de disco, mas ele está se revelando também um grande produtor. Ele é músico, toca vários instrumentos e tem essa sensibilidade. Mas nessas duas faixas ele fez quase tudo.

Lab: Alguma das músicas terá letra sua? A de Gente Bonita parece com você, você poderia muito ter escrito ela…
Fióti: Poderia, sinceramente. Essa letra é muito antiga, e eu gosto muito dela porque é um lado e uma fase do Emicida que ninguém conhece. Ele tem uma biblioteca na cabeça. Eu dei a letra de uma música pra ele, era um bagulho retinho, ele colocou coisa pra caramba de informação, que vai me dar o maior trabalho pra interpretar. Mas, enfim, é ele.
Nunca me coloquei na condição de me forçar pra escrever. Eu sinto que várias vezes me vêm a inspiração, mas nuns momentos muito toscos. Às vezes vem, você acha que vai vir a letra, mas vem só a ideia. Mas quando a pessoa tem o tino…
Eu valorizo quem sabe escrever e sei que não sei fazer isso tão bem ainda. É uma coisa de maturidade, eu quero desenvolver esse lado de compositor.

(A segunda parte da entrevista você confere dia 11/02)